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"Perdi muita coisa na vida": a história do argentino que tinha tudo e foi parar nas ruas do ES

Ramón Alberto Maldonado, de 71 anos, conheceu o álcool quando trabalhava embarcado. Ele bebia para amenizar a saudade de casa e o vício o levou a perder a família, a saúde e bens materiais

Thaiz Blunck

Redação Folha Vitória
Foto: Thiago Soares/Folha Vitória

Você já pensou em como seria a sua vida se, de uma hora para outra, perdesse tudo o que tem hoje? Nesta sexta-feira (26), o argentino Ramón Alberto Maldonado, que vive no Espírito Santo, completa 71 anos. Se ele pudesse escolher um presente, talvez fosse a oportunidade de voltar no tempo e consertar erros do passado que o levaram a morar na rua.

O sotaque "portunhol", mistura de português com espanhol, entrega que Ramón já vive no Brasil há muitos anos. Sem intenção de ficar, ele chegou ao país em 1986 e nunca mais foi embora. 

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Na Argentina, deixou a ex-esposa e três filhas, frutos do primeiro casamento. Em terras brasileiras, conheceu uma carioca com quem viveu por 7 anos no Rio de Janeiro e teve o quarto filho, Diego. O nome, segundo ele, é uma homenagem ao jogador Diego Maradona, que brilhava nos campos naquela época.

"Eu vi a Argentina ser campeã da Copa do Mundo em 1986, na Cidade do México, e depois vim para o Brasil passar o Réveillon em Copacabana. Sempre gostei daqui, então cheguei e não saí mais. Conheci minha ex-mulher, tive um filho bonito com ela que se chama Diego, em homenagem ao Maradona. Naquela época, ele estava arrebentando nos campos", relembra. 

A solidão no navio e o começo de um vício

Antes de vir para o Brasil, Ramón trabalhava embarcado em navios da Marinha Mercante, recebia um bom salário e, além da casa que comprou na Argentina, conseguiu fazer uma reserva financeira para viver bem. 

Foto: Thiago Soares/Folha Vitória

Porém, foi no navio também que ele passou a consumir bebida alcoólica na tentativa de amenizar a saudade que sentia de casa, sem imaginar que estava diante de uma armadilha. 

"Comecei a beber no navio. Tínhamos direito a seis cervejas e uma garrafa de bebida quente por semana.  Lá, você ganha dinheiro, tem alimentação, não falta nada, mas está longe da família. Não tem Natal, não tem aniversário, não tem feriado. Colocava uma música e chorava. Chorava de saudade da minha filha, de amigos, de não poder assistir ao Boca Juniors, meu time do coração".
Foto: Folha Vitória

Ao decidir ficar no Rio de Janeiro, Ramón foi morar com sua então companheira na Ilha do Governador, na Zona Norte da cidade. Com sorriso no rosto, ele recorda com carinho dos momentos vividos com a brasileira, apesar de algumas barreiras no relacionamento. 

"Foi uma história bonita. Primeiro, eu chamei ela para sair e ela não aceitou, mas insisti. Saímos para tomar um chope, conversar, e aí começamos a namorar. Ela ficou grávida e, em 14 de fevereiro de 1988, nasceu o meu filho, que hoje tem 36 anos. No começo estava tudo bem, mas tinha um problema: a família dela nunca me aceitou. Ela já tinha outro filho, com outra pessoa, e a família dela gostava muito do pai daquela criança", recordou ele. 

O relacionamento chegou ao fim, e o dinheiro que Ramón tinha guardado também acabou. Então, ele saiu em busca de emprego e foi contratado para trabalhar como carpinteiro em uma grande construtora. Permaneceu no Rio de Janeiro por um tempo, até que veio parar no Espírito Santo

Ramón foi acolhido em várias instituições de Vitória

Sem ter onde morar, Ramón passou por vários acolhimentos institucionais até chegar ao Abrigo I, em Vitória. Antes, ele vivia em todos os lugares e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum: recebia atendimento no Centro Pop da Capital durante o dia e à noite ia para a hospedagem noturna.

Foto: Thaiz Blunck | Folha Vitória
Ramón exibe a camisa que ganhou do filho
"Acabou o dinheiro, acabou a boa vida e também comecei a ficar doente, com pancreatite. Tem três meses que estou aqui, mas já passei por outros. Sou muito bem tratado, não tenho nada para reclamar, mas penso que ainda não conquistei aquilo que eu quero, que é uma casa para viver minha vida e não depender dos outros. Daqui a um ano, se conseguir um lugar, penso em morar sozinho", disse ele. 

Ramón chegou ao abrigo em janeiro. Além da doença no pâncreas, ele também é diabético e hipertenso, e lá recebe todo o suporte necessário para cuidar da saúde: é medicado pelas equipes no horário certo e levado a consultas e tratamentos médicos. 

As atividades físicas e socioeducativas também fazem parte da rotina dele na instituição, que conta com uma sala para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), biblioteca com vários livros, espaço de convivência e ampla área externa. 

Aos 71 anos, o que Ramón espera do futuro?

Questionado sobre como se sente agora e o que espera do futuro, Ramón expressa o desejo de ter sua vida independente. Com 71 anos, ele afirma que tem pouco tempo pela frente, mas quer viver os últimos anos "livre e em paz". 

Foto: Thiago Soares/Folha Vitória
"Gostaria de estar em melhores condições, de ter minha vida livre, sem depender de ninguém, e ter um dinheirinho para tocar minha vida. Não sei se sou capacitado para dar conselhos porque perdi muitas coisas, tanto família, quanto saúde, mas uma coisa que eu gostaria de dizer é: cuide muito da família, é uma coisa muito importante na vida da gente, e evite qualquer tipo de vício. Eu não tenho muito o que esperar, já estou com 71 anos, mas espero pelo menos paz e saúde, é o que peço todos os dias."
Foto: Folha Vitória

Em situação de rua, bem-sucedidos tornam-se invisíveis

Assim como Ramón, que tinha estabilidade financeira e um padrão de vida elevado, como ele mesmo relata, outras pessoas bem-sucedidas também foram acolhidas pelo abrigo desde a sua criação, em julho de 2021. As aprovações em concursos e as experiências profissionais pouco importavam enquanto eles estavam nas ruas. 

A secretária de Assistência Social, Cintya Schulz, relembra o caso de um empresário, também estrangeiro, que foi culpado pela morte da esposa e das duas filhas em um acidente de trânsito. 

"Em um número menor, nós tivemos pessoas com alto grau de escolaridade, servidores públicos, médicos, engenheiros, professores e empresários que viveram alguma situação na vida que fez com que não quisessem mais retornar para suas casas. Eu me recordo de um empresário estrangeiro que era culpado pela morte da esposa e dos filhos em um acidente, após dormir no volante. Ele vivia vagando e não queria voltar para a vida que tinha", contou ela.
Foto: Thiago Soares / Folha Vitória

Outro caso que faz parte da história do abrigo é o de um professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que também esteve em situação de vulnerabilidade social e foi acolhido pelo próprio aluno. 

"Na época da pandemia nós tivemos um professor, inclusive PhD, que acabou ficando em situação de rua e precisou ser acolhido. Por coincidência, ele era da área de Educação Física, e como nós temos uma parceria com a Secretaria de Esportes de Vitória, o professor que hoje atua aqui, foi aluno dele. Então, ele teve a oportunidade de fazer atividades físicas com esse aluno", conta o coordenador do abrigo, Rodrigo Trindade

O profissional de Educação Física responsável pelo acolhimento é Fernando Matos, que já faz esse trabalho na instituição há três anos. No primeiro momento, ao se deparar com seu professor naquela situação, ele ficou sem saber como agir. Depois, pensou na melhor forma de ajudá-lo.

Foto: Thiago Soares/Folha Vitória
"Ele era um cara bem descolado, todo mundo gostava dele e sempre tratava todo mundo bem. Eu o via naquela situação e queria fazer com que  voltasse a ser aquele professor de antes, então comecei a fazer as atividades e brincadeiras mais lúdicas. Naquela situação em que ele estava, isso foi de suma importância", contou Fernando. 

População de rua no Brasil cresceu 10 vezes em uma década

Segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (Ipea), o número de pessoas em situação de rua subiu de 21.934 em 2013 para 227.087 até agosto de 2023. Os dados são do Cadastro Único (CadÚnico).

Ao serem questionadas sobre o motivo de morar na rua, 47,3% das pessoas responderam que saíram de casa por problemas familiares ou com os companheiros. O desemprego também aparece no levantamento, sendo citado por 40,5% das pessoas. 

Além disso, alcoolismo ou drogas (30,4%) e perda de moradia (26,1%), são os outros principais motivos apontados. 

Precisa de ajuda? Centro Pop é a porta de entrada!

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social para População de Rua (Centro-Pop) é a porta de entrada para pessoas em situação de vulnerabilidade social que precisam de acolhimento. 

Lá acontece a acolhida imediata e, a partir das demandas de cada pessoa, as equipes ofertam outros tipos de serviços e fazem encaminhamento para a rede de serviços socioassistenciais.

Em casos de problemas de saúde ou dependência química, por exemplo, a pessoa é encaminhada aos serviços públicos de saúde como os pronto-atendimentos e unidades de saúde.

Centro Pop de Vitória

Endereço: Avenida Dário Lourenço de Souza, s/n, Mário Cypreste
Telefones: (27) 3132-7053 / 99612-8310
Horário de atendimento: de segunda a sexta-feira, das 7h às 18h

Centro Pop de Vila Velha

Endereço: Rua Cordovil, nº 68, Divino Espírito Santo
Telefone: (27) 99238-1838
Horário de atendimento: 7h às 17h

Centro Pop da Serra

Endereço: Rua Ilma Henriques, 114 - Jardim Limoeiro, Serra - ES
Telefone: (27) 2141-1189
Horário de atendimento: 7h às 19h

Centro Pop de Cariacica

Endereço: Rua Manoel Freire Corrêa, 22 - Santa Bárbara, Cariacica
Telefone: (27) 98875-1261
Horário de atendimento: 8h às 18h

Veja algumas cartas escritas por pessoas acolhidas no abrigo: 

Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória
Thiago Soares/Folha Vitória

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