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Abuso sexual infantil: dor silenciada e luta contra o medo

Só em 2016 foram registradas 17,5 mil denúncias pelo Disque 100. Conheça histórias de quem sofreu com o silêncio e decidiu falar mesmo anos depois do crime

Ana Julia Chan *Estagiário , Breno Ribeiro

Redação Folha Vitória
O abuso sexual silencia a vítima pelo medo. Falar e denunciar se tornam desafio

Em 18 de maio de 1973, Araceli Cabrera Crespo, de 8 anos, foi sequestrada, violentada e cruelmente assassinada. Com a repercussão do caso, a data foi instituída como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. O dia é marcado para que a população brasileira se manifeste contra esse tipo de violência.

Só em 2016, foram registradas 17,5 mil denúncias pelo Disque 100. A maior parte delas é referente aos crimes de abuso sexual (72%) e exploração sexual (20%), segundo dados divulgados pelo Disque Direitos Humanos. As demais ligações estavam relacionadas a outras violações como pornografia, estupro e exploração sexual no turismo.

Infelizmente, os dados apontam que ainda é comum que o crime ocorra, inclusive, atravessando gerações. Apesar do trauma, existem vítimas que foram abusadas durante a infância, mas não deixaram que a exploração sexual tirassem delas o desejo de viver. Hoje, elas usam suas histórias como armas na luta contra o abuso em qualquer circunstância.

O medo de ser considerada culpada, expulsa de casa e de não acreditarem em seus relatos fizeram com que a técnica em enfermagem July Vieira guardasse a violência sofrida por cerca de 11 anos. “Maior que o medo e nervosismo de falar sobre isso, é poder dizer hoje para as crianças e adolescentes não terem medo, não sofrerem e denunciarem. Hoje, meu intuito é dizer para as pessoas que a gente supera, a gente sobrevive”, explica.

Medo

Muitas vítimas têm medo de se expor e confiar em alguém para relatar o abuso. Isso ocorre, em diversos casos, por conta das constantes ameaças sofridas por parte do abusador. Por esse motivo, é importante ter atenção à quaisquer alterações de comportamento da criança e/ou do adolescente.

“Geralmente, o sujeito pode ficar retraído, distante e apresentar quadro de fobia... Medo de tudo. Pesadelos, quadros depressivos e tentativas de suicídio são comuns em muitos dos casos”, declara o psicólogo Getúlio Sérgio Souza Pinto, que também atua no Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivis), no Hospital das Clínicas, em Vitória.

Segundo o psicólogo, caso o responsável tenha certeza de que a criança esteja sofrendo abusos, a orientação principal é buscar órgãos especializados para fazer a denúncia e, especialmente, tratar as alterações físicas e psicológicas que possam afetar a vítima a curto e longo prazo.

A diarista Maura Lúcia da Silva, de 37 anos, até hoje lembra do sofrimento que viveu durante cinco anos dentro de sua própria casa. Entre os 5 e 10 anos de idade, ela foi abusada pelo próprio pai. O receio de externalizar sua dor vinha da culpa que sentia e das ameaças que sofria.

Com o propósito de fugir dos abusos, Maura decidiu sair de casa aos 12 anos. Encontrou uma casa para ajudar nos trabalhos domésticos em troca de moradia, mas aos 13, o transtorno reapareceu em sua vida, e sofreu abusos por parte do tio da ex-patroa. “Dessa vez eu tentei me matar, pois me achava culpada”, revelou a vítima.

“Meu pai dizia que se eu contasse para alguém, ele iria bater na minha mãe. E isso acontecia. Era comum ele bater na minha mãe”, confessou Maura. De acordo com ela, esse assunto ainda é um tabu em sua vida e nenhum familiar tem conhecimento do que aconteceu. A primeira pessoa a quem Maura teve coragem de contar, foi sua patroa, há 2 anos.

Uma estudante de administração, que preferiu não ser identificada, também teve como principal obstáculo o medo. A preocupação com o estrago das relações familiares, com a reação do pai e com os outros não acreditarem em seu relato resultou no silêncio. A vítima disse que jamais pensou em denunciar ou contar para algum familiar, dessa forma, encontrou nos amigos um apoio e um caminho para conselhos e orientação.

Diálogo é fundamental

O psicólogo Getúlio Sérgio acredita que a primeira característica a ser notada no comportamento da criança que sofreu algum tipo de abuso é o discurso sobre sexo. “No caso da criança, o primeiro dado a ficar atento, é a presença de um discurso que tenha compatibilidade com o que se espera no entendimento de sexo. Um discurso muito liberal para uma criança é preocupante”, alerta o psicólogo.

Uma relação de confiança entre a criança e o adolescente com pais e responsáveis é imprescindível para que estes casos não sejam mais tão comuns. A maioria das vítimas evita conversar sobre a violência sofrida, porque aquele tema é um tabu no ambiente onde elas vivem.

Segundo July, lidar com o assunto de forma direta é a melhor forma de prevenção. “Eu tenho um filho de 10 anos e eu falo pra ele todos os dias: ‘se alguém tentar fazer qualquer coisa com você, conta para mamãe. Se tentarem puxar seu calção e depois te ameaçarem dizendo que eu vou te bater, não acredita”, fala.

Para a técnica em enfermagem, é mais do que essencial a existência desse diálogo para evitar que crianças e adolescentes passem pelo abuso sexual. “Quando eu era criança, não existia esse apoio. Normalmente as pessoas julgavam e dizia que era por causa da roupa que a pessoa vestia. Hoje é importante frisar que a culpa não é da vítima”, diz.

O trauma vivido por Maura faz com que ela evite ao máximo que o mesmo ocorra com sua filha, por isso os conselhos são constantes. Ela alerta a filha para que não deixe ninguém tocar em seu corpo no transporte que a leva para a escola e dentro da instituição. Caso isso ocorra, Maura aconselha contar imediatamente para ela ou para a professora.

O psicólogo afirma que é importante estabelecer uma relação de confiança entre a criança e o responsável, para que essa sinta-se confortável para conversar sobre determinados assuntos. “Desconstruir tabus é fundamental. É importante que não existam assuntos que não possam ser falados”, aconselha o profissional.

Superação

Segundo Getúlio, as experiências traumáticas deste nível deixam marcas eternas, mas com a ajuda de profissionais especializados pode-se esperar respostas positivas quando se trata de superação e recuperação.

A estudante, que preferiu não se identificar, foi abusada aos 11 pelo tio enquanto dormia na casa dele. No momento, a jovem, que estava dormindo, pensou que fosse uma brincadeira de sua prima, mas quando acordou, percebeu que tratava-se do tio tentando tirar sua roupa íntima. A partir de então, dormir tornou-se impossível naquela noite. No dia seguinte, a vítima voltou para casa e as relações com o tio foram cortadas definitivamente.

Para ela, o maior trauma gerado pelo abuso sofrido na infância foi a dificuldade de, posteriormente, relacionar-se afetivamente. Segundo a vítima, é muito difícil criar confiança em alguém depois de um acontecimento tão traumatizante.

"Antigamente, precisei contar para o meu ex-parceiro, pois adiava nossa relação por conta do medo que eu tinha da pessoa me forçar a fazer algo que eu não quisesse. Hoje, eu procuro conhecer bem a pessoa antes de me relacionar e não falo mais sobre o assunto. Tenho muito cuidado na hora de conhecer alguém", relata a jovem.

Campanha

Na tentativa de conscientizar a população sobre os mais variados temas, o Ministério Público do Trabalho (MPT) criou o projeto “MPT em Quadrinhos”, no qual busca dialogar de maneira simples e didática sobre assuntos que aparentam complicados de serem abordados.

A atual edição, de número 36, tem como título “Avenida Araceli”. Há 45 anos, no dia 18 de maio de 1973, a capixaba Araceli Cabrera Crespo, de 8 anos, foi sequestrada, violentada e cruelmente assassinada. O corpo da menina foi encontrado carbonizado seis dias depois do crime e os seus agressores jamais foram punidos. Com a grande repercussão do caso, dia 18 de maio foi determinado como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A revista então, aborda o tema, desmistifica estereótipos e mostra maneiras de denunciar.

A juíza do trabalho e gestora do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem no Espírito Santo, Suzane Schulz Ribeiro, acredita que a informação seja a melhor estratégia de defesa para evitar estes casos. “A revista visa trazer informações para prevenir tais violências ou interrompê-las, estimulando o olhar atento para identificação da exploração ou abuso, bem como para informação quanto aos canais de denúncia disponíveis”, conta Suzane.

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